Transtornos invisíveis na realidade sindical
Data de publicação: 25 Out 2023Por José Reginaldo Inácio—Doutor em Serviço Social, diretor de Formação Sindical e Qualificação Profissional da NCST e diretor executivo da CNTI (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria).
Quero, como sindicalista, brevemente inserir uma questão aparentemente rudimentar, mas que fica, quase sempre, de fora deste debate. Em específico, o da saúde mental ou física, porém na vida sindical. Trata-se da integridade física e mental da liderança sindical, do próprio corpo coletivo, o sindicalismo, acometidos por afecções cuja invisibilidade tem sido muito nociva às suas ações.
Em um primeiro momento, é importante trazer algumas reflexões que identifiquem como o processo organizado de precarização e de degradação das formas de produção e serviço, que provoca adoecimento, invalidez e morte no ambiente de trabalho, impulsionado pelo neoliberalismo, mais notadamente, no Brasil, desde 2016, também tem rebatimento direto na própria ação sindical.
Há uma conjunção oculta, que quase não falamos dela, ou seja: como se fundem as mazelas típicas, admitidas e reconhecidas, das formas de organização dos ambientes e direitos de quem trabalha “com” a organização das ações coletivas laboral e popular.
Quando se planeja e se projeta as formas de como o trabalho se realiza, simultaneamente se organiza o ambiente para a sua execução e é idealizado como conviver com o risco que está ali situado. O estado potencial de acidente, os seus efeitos e, por óbvio, é claro, o adoecimento, a invalidez e a morte são expectativas reais evocadas para quem nele trabalha ou irá trabalhar. Daí os métodos ou os antídotos instituídos para a tentativa de se neutralizar ou de se conviver com tais efeitos são (ou estão) parametrizados ou dosados até mesmo com apanágio de constitucionalidade, além de previsão legal, normas, portarias, resoluções, convenções e acordos coletivos etc. Parâmetros ou doses que não perdem de vista como se dão as formas de resistência e de controle social desse estado em que o perigo, o insalubre e o penoso são um compósito admitido — até como um pseudopreventivo constitucional1 — de riscos inerentes ao trabalho.
Consequentemente, ao conviver com uma realidade que admite uma condição (ou posição) estagnante de prevenção, implementa-se o enfraquecimento ou, por que não, desencadeia-se a deterioração da ação coletiva. Razão pela qual, a evidência de que “capitalismo e destruição do trabalho”, aqui acrescento: “vivo”, nos traz as impressões e pressões de “como o trabalho contemporâneo afeta as relações pessoais, sociais e coletivas”, que é o objeto do debate deste capítulo.2
A dimensão desta realidade tem componentes que afiam os pactos sociais, de tal forma que acarretam cortes profundos no tecido social, cuja gravidade tem provocado desde a invalidez temporária até a destruição de polos determinantes de resistência e combate ao neoliberalismo.
Da predição legitimada ao transtorno real de sua legalidade
Elementos constitutivos, regidos em pactos sociais, que poderiam conter, regrar ou orientar no sentido inverso, para resistir ou enfrentar a ordem estabelecida, invariavelmente, incitam ao contrário: o legislado vige como pacto formulado para promoção e prática legítimas do antissindicalismo, ostensivamente há a dilação do crime e da fraude contra a vida das classes trabalhadoras.
O que quero dizer com isso é que as leis, por aqui, com mostras variadas, que reitero — em geral, principalmente a partir de 2016, mas não só a partir daí, forjicadas pelo Executivo e buriladas pelo Legislativo, tais como a Emenda Constitucional (EC) 95, aprovada em 2016; as legislações que modificam profundamente os direitos do trabalho no Brasil — especificamente as leis n.os 13.429/2017, 13.467/2017, 13.844/2019, 13.846/2019, 13.874/2019 e a EC 103/2019, entre outras —, em detrimento dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, foram aprovadas sob essa perspectiva, e o Judiciário, em suas cortes superiores, tem se demonstrado um guardião supremo de todos os ritos que a sacrificam aos deuses do mercado.
A EC 95/2016, ao estabelecer o teto de gastos, dá autorização para o Estado não cumprir com políticas públicas e sequer garantir os direitos sociais fundamentais para a manutenção dos pilares determinantes na sustentação de um Estado Democrático de Direito, ainda que capitalista.
Como sustentar esse teto, suas flagrantes violações de direitos fundamentais, mas também conter as forças sociais populares, que poderiam resistir ou contrapor a sua vigência, senão pelas vias impositivas da lei, foi o que aconteceu.
Em síntese, eis aí, parte da conformação de tais violações reguladas em leis e na Constituição:
Nas leis 13.429/17 – terceirização irrestrita; e 13.467/17 – reforma trabalhista, na qual a degradação das condições e proteção social do trabalho é bem simbolizada no contrato zero-hora (Maeda, 2017), que no Brasil usa a máscara do trabalho intermitente e cria uma série de óbices à organização laboral; desde a ruptura da autonomia das assembleias até a violação impeditiva às formas de arrecadação para a ação sindical;
Nas leis 13.844/19 (MP 870/19) – estruturação ministerial que extinguiu o Ministério do Trabalho e da Previdência. Ato simbólico e real da interdição do diálogo do Executivo federal com as classes trabalhadoras. Cessar, calar a voz do trabalhador e da trabalhadora; 13.846/19 (MP 871/19) – que sob o pretexto de combater a fraude na Previdência praticamente restringiu o acesso ao benefício acidentário e/ou auxílio-doença e promoveu intensamente a cessação de benefícios de mesma natureza. Pode-se afirmar que essa MP foi o balão de ensaio da PEC 06/2019 – “reforma” da Previdência (EC 103/19);
A Lei 13874/19 – derivada MP 881/19, apelidada como a MP da liberdade econômica e minirreforma trabalhista, que, dentre outros pontos adversos a quem está empregado, ao desobrigar o controle de ponto em empresas com até 20 empregados, afeta o controle de jornada, intervalos intrajornada e hora extra…, dando carta-branca aos patrões para ampliar acordos individuais nesse sentido;
A Emenda Constitucional 103/19 (PEC 06/2019) – “reforma” da Previdência, que, em meio a seus ataques aos direitos previdenciários, além de ampliar e forçar o desemprego e a invalidez, praticamente descaracterizou a aposentadoria por condição especial de trabalho, onde o insalubre e o periculoso permanece sem controle e mantêm a doença, a mutilação, a invalidez e a morte como um espectro normatizado imposto e administrado pelos três Poderes às classes trabalhadoras.
Poderia ampliar esta série de violações, mas o primordial é caracterizá-las como admitidas pela maioria dos agentes públicos (políticos, parlamentares, juízes etc.) e, ter em conta, “se” e “o quanto” tem sido utilizada, até mesmo pelo sindicalismo, como apologia para a desorganização das classes trabalhadoras.
O que temos acompanhado, de fato, é um flagrante e contínuo ataque às classes trabalhadoras, cujas dimensões se tornaram expressivas quando para esta ofensiva neoliberal se definiu como ação tática priorizar, como demonstrado, uma investida contra as instituições que historicamente estiveram e estão nas trincheiras de resistência contra esse processo de destruição, sendo o sindicalismo a principal delas.
Não é demais reiterar que tem sido a habitualidade criminal dos setores econômicos e empresariais, organizada por meio do costume patronal de praticá-la, que constituiu o arcabouço legal de ilícitos acobertados em uma nova (velha) ordem (desordem) legislativa (escravocrata/desumana).
Como disse em outra ocasião, a título de intervenção acerca da essencialidade da ação sindical, o que ocorre é o contrário. Em um momento de intensificação da opressão humana, da mortificação do corpo e do espírito, das formas mais violentas e vis da repressão e da exploração, é fundamental anular qualquer possibilidade de os sentidos operarem para resistir a essa situação. Dessa maneira, por óbvio, não se trata de uma caricatura pervertida e dissimulada, tampouco de insinuar à incompetência, mas, sim, de a caracterização de uma ação planejada de governo,3 na qual aparelhar certos segmentos religiosos significa usar da ilusão para neutralizar a resistência dos pobres e miseráveis e, mais ainda, daqueles que dependem do trabalho para viver. E da mesma forma, sabemos que desaparelhar e deslegitimar a ação sindical está em mesma direção, assim como anular a função de qualquer ente estruturado ou institucional (Ministério Público do Trabalho, Justiça do Trabalho, universidades, agentes de vigilância sanitária etc.), cuja finalidade seja fiscalizar, denunciar e/ou impedir esse estado opressor e aviltante da condição humana. Por óbvio, também evidente, é infirmar o papel que exercem de conscientizar o coletivo laboral e prepará-lo para se proteger, combater as formas e personalidades do capital corporificadas nas égides estatais estruturantes do estado de mal-estar social vigente.
Da realidade destrutiva do legal à contenção legitimada de seu combate
Depois das primeiras reflexões, é importante, para sequenciá-las, ter em mente que mesmo as reservas remanescentes para a ação sindical foram duramente atacadas. Primeiro, fisicamente. Afinal não foram apenas a arrecadação (receita/financeira), os bens imóveis e móveis, mas o corpo laboral/dirigente (político) das entidades sindicais foi também drasticamente atingido.
Para se ter uma visão mais acurada do alcance de ataque na estrutura física das entidades sindicais, ele atingiu frontalmente até mesmo as grandes centrais. Fato determinante para que a grande imprensa se refastelasse em regozijo e, assim, repercutisse perfidamente o sinal mais evidente para acentuar a crise sindical brasileira. Um dos destaques foi a matéria veiculada pela revista Veja: “Em ‘agonia’, sindicatos demitem e vendem imóveis para sobreviver. Com queda brutal de arrecadação após reforma trabalhista, entidades relatam perseguição à atuação e veem existência ameaçada”. (Freire, 2018).
Todavia, inicialmente, é com a Nota Técnica (NT) n.º 177 do DIEESE (2017), que ressalta “A importância da organização sindical dos trabalhadores”, para em seguida, com a sua Nota Técnica n.º 200 (DIEESE, 2018), “Subsídios para o debate sobre a questão do Financiamento Sindical”, que destaco um ponto relevante de análise ao nosso debate.
Ou seja, se “A importância da organização sindical dos trabalhadores”, na NT 177, é ressalvada da seguinte forma:
Os sindicatos nascem como reação às precárias condições de trabalho e remuneração a que estão submetidos os trabalhadores no capitalismo;
Uma dimensão indispensável da democracia é a existência de um Sistema de Relações de Trabalho democrático;
A atuação dos sindicatos contribuiu decisivamente para que a Constituição de 1988 reservasse todo o art. 7.º aos direitos dos trabalhadores;
As negociações coletivas ampliam direitos garantidos por lei e avançam em novas conquistas para os trabalhadores;
As entidades representativas de trabalhadores precisam dispor de recursos — políticos e financeiros — para se contraporem ao poder das corporações empresariais;
A instituição que melhor atua para assegurar o cumprimento dos direitos e denunciar os abusos é o sindicato;
A atuação do movimento sindical tem sido decisiva na negociação de Grandes temas nacionais.
Então, só é aceitável assegurar esta importância, “a importância da organização sindical”, se for reconhecido o valor de sua ação, independentemente dos sucessivos ataques sofridos, tanto às classes trabalhadoras quanto à própria estrutura sindical. Diferente disso, há, sem dúvida, a negação histórica do papel do sindicalismo laboral e a sobreposição ideológica do capital em relação a esse.
Para mais bem evidenciar o tanto que essa sobreposição ideológica do capital é nociva para o movimento sindical, é fundamental recorrer a NT 200 do DIEESE (2018), porque ao oferecer alguns “subsídios para o debate sobre a questão do financiamento sindical”, trouxe à tona uma particularidade da estrutura sindical brasileira muito pouco expressa e até mesmo escondida pelos meios de comunicação de massa, setores empresariais, políticos e jurídicos. Vejamos:
Outra dimensão importante a ser considerada é a condição de empregadora — direta e indireta — das entidades sindicais laborais. Segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho, em 2017, cerca de 106 mil trabalhadores eram por elas empregados. Se, de acordo com estimativas, cada emprego direto gera três indiretos, a estrutura sindical laboral empregava, aproximadamente 424 mil trabalhadores em 2017 (DIEESE, 2018).
Trata-se de uma inexpressão propositada, porque do contrário o impacto da Lei 13.467/17 teria de negar, para facilitar sua aceitação, o valor político sindical laboral, seu objeto e sua direção: “a atuação dos sindicatos ganha relevância incontestável quando se observa a diversificada gama de temas e itens negociados e direitos inscritos nos Acordos e Convenções Coletivas”, como revela NT 177 do DIEESE (2017). Mas não só isso, pois à ação sindical também tem sido historicamente incorporada uma série de outras atribuições, ou seja:
Além da representação dos trabalhadores e das conquistas stricto sensu, boa parte das entidades sindicais oferece à base um conjunto de serviços nas áreas jurídicas; assistencial; de saúde — disponibilizando médicos, dentistas e laboratórios; de formação — realizando cursos, capacitação profissional e atividades formativas; e de lazer — por meio da manutenção de colônias de férias e de clubes de campo e da promoção de atividades recreativas, esportivas e culturais —; serviços aos quais, grande parte das categorias profissionais não teriam acesso (Idem).
Sindicalista: “inimigo hereditário”?
Ocorre que o acentuado golpe às classes trabalhadoras, só foi e é bem-sucedido, até então, porque se dissemina por uma via obscurecida por preconceitos — praticamente hereditários — em que o sindicalista é tido como uma espécie de “inimigo hereditário”,4 (Reich, 2001).
Consequentemente, isso é um dos motivos à aversão sindical laboral, se não um dos principais, afinal o sindicato laboral é o habitat natural para a concentração deste “inimigo”. Institucionalmente, por óbvio, o foco preferencial de aversão em uma sociedade liderada pelo capital (e suas representações), até porque, o sindicalismo em si é a caracterização ideológica da expressão de seu “inimigo hereditário”.
Um preconceito hereditário cuja origem, adiante veremos, está sedimentada na aversão a quem representa em si as classes menos favorecidas e esse (preconceito), invariavelmente, é presenciado em quase todos os ambientes da sociedade, não apenas no de trabalho, já que até o ambiente familiar o acolhe, o educacional/acadêmico o ensina/preserva, o religioso o doutrina, o midiático e/ou de comunicação de massas o acentua/propaga, o da política o qualifica/tipifica e o judiciário o legitima, razão pela qual, o sustentado preconceito adquire proporções de assédio e antissindicalismo ao ponto de intuir e sustentar um processo parasitário classista que tem como hospedeiro o sindicato, como se o ente sindical detivesse em si todas as obrigações para com as classes trabalhadoras representadas e, da mesma forma, um elã vital próprio.
Para manter vivo tal preconceito, é necessário aprofundá-lo e reavivá-lo com ideias (velhas ou novas) que deslegitimem o seu papel, criminalizem sua ação e seu comportamento e, acima de tudo, neguem sua capacidade.
Exatamente, em sentido inverso, buscando dar ênfase à capacidade sindical, em um levantamento recente com intuito de contrapor a acentuada aversão ao sindicalismo, tendo como base dados do Sistema Mediador5 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), foram pactuadas pelo movimento sindical, em 11 anos, de 2010 a 2021, mais de 542 mil unidades de negociações favoráveis às classes trabalhadoras. Em que pese o rigor das críticas e das limitações da sua ação, diversas reais, é claro, no entanto, muitas delas infundadas e insustentáveis, já que eivadas por manipulações cavilosas de práticas antissindical, as quais, na atualidade, são ainda mais recorrentes com a salvaguarda do impositivo legal de 2017.
Em contrapartida, é bom ter em mente outros dados e números poucos difundidos. Em 33 anos, de 1988 até 2021, segundo dados do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT, 2021), “no âmbito federal”, mesmo o Congresso Nacional movendo toda a sua estrutura parlamentar e recursos:6 assessorias técnicas, corpo funcional, comissionados, concursados e terceirizados, além de quadros externos especializados e aporte funcional do Executivo federal em proposituras próprias adensadas por meio dos corpos ministeriais, “foram editadas 176.243 normas7 desde a promulgação da Constituição Federal”. Mas, é fundamental questionar: a que se refere o conteúdo legislado, foi favorável às classes trabalhadoras, seja ela empregada ou desempregada? Tendo como uma amostra elementar parte significativa daquilo que foi legislado de 2016 para cá, sabemos que não.
O que de fato houve foi a regulação geral e legal do subemprego: informalidade; rotatividade; desemprego sem seguro desemprego; trabalho escravo; excesso de jornada; prática antissindical; assédio moral, sexual e religioso; adoecimento, acidente, morte, mutilações no trabalho; insegurança jurídica laboral; deterioração das formas de fiscalização da proteção social dos direitos e ambiente do trabalho; violação ampla de direitos sociais e humanos (previdenciário, civil, ambiental, sanitário, penal etc.).
Já com “a prática de negociações coletivas”, as entidades sindicais “que asseguram aos trabalhadores por elas representados a possibilidade de ampliar direitos garantidos por lei”, de igual maneira o fazem também para “adquirir novas conquistas” (DIEESE, 2017). Diferentemente, a prática legislativa, de modo geral, como já vimos, raramente se fundamenta ou é realizada dessa forma.
E, quando ocorre medidas legislativas favoráveis às classes trabalhadoras, geralmente, tem seu fundamento em cláusulas anteriormente negociadas pelo movimento sindical. A NT 177, ao ressaltar a importância da ação sindical laboral, possibilita observar que “a própria legislação trabalhista, muitas vezes, promove a extensão a todos os assalariados de direitos [adquiridos pelos sindicatos] antes restritos a algumas categorias de trabalhadores, que os haviam conquistado em negociações coletivas específicas”, como exemplarmente são destacados:
[…] os casos, entre outros, do 13.º salário, inicialmente negociado como “abono natalício” e estendido a todos os trabalhadores em 1962,8 e de direitos inscritos na Constituição de 1988: redução da jornada de trabalho de 48 para 44 horas semanais; elevação do percentual de remuneração da hora extra para 50%; ampliação da licença-maternidade para 120 dias; criação da licença-paternidade de cinco dias; e do adicional de 1/3 sobre a remuneração das férias. Em outro capítulo da Carta Magna, foi estendido aos servidores públicos o direito de sindicalização e de greve, que, na prática, já eram exercidos por esses trabalhadores (Idem).
Ainda assim, como já disse, é acentuado o preconceito ao sindicalismo laboral. Por que isso ocorre, mesmo sendo determinante o papel sindical laboral nas conquistas cruciais do processo civilizatório — na criação e institucionalização dos direitos sociais, econômicos e culturais das classes trabalhadoras? Por que, então, permanece viva a aversão à instituição sindical, acidamente destilada contra a liderança sindical?
Da “Aporofobia” à “Sindicatofobia”
Para uma resposta minimamente fundamentada, além de reconhecer que temos admitido conviver com um ciclo ascendente de aversões, como a xenofobia, a homofobia, a misoginia, dentre outras, é, contudo, na aversão à pobreza, a “aporofobia”, um neologismo cunhado por Adela Cortina9 (2020), que recorro. Sua expressão ganhou mais visibilidade no Brasil por meio do padre Júlio Lancelotti, que adota a “aporofobia” para denunciar locais e municípios onde a aversão aos pobres e miseráveis é notória não somente nas relações interpessoais, cujas diferenças estampam um dos lados mais cruéis da desigualdade e da injustiça social, mas como ato banal e institucionalizado em espaços públicos, prefeituras, empresas e institui- ções (públicas ou privadas). O que, de modo elementar, por que não, se pode daí antever ou intuir na “aporofobia” a gênese da aversão ao sindicato laboral, ou, mais detidamente, a quem o dirige, lidera, representa ou é por ele representado.
Ademais, os sentidos de representação das classes subalternizadas, aquelas que se sujeitam, mesmo em condições indignas, à obrigação de fazer, como é o caso de milhões daqueles/as que vivem em condições precárias de vida e trabalho, com ou sem vínculo empregatício, seja no desalento ou na informalidade, experimentam um sentimento que considero como o descrito por Adela Cortina (2020, p. 18): “não é um sentimento de xenofobia”, mas um sentimento pior do que esse, “porque o que produz a rejeição e a aversão não é que venham de fora, que sejam de outras raças ou etnias, não incomodam os estrangeiros pelo fato de serem estrangeiros, mas incomoda, isso sim, que sejam pobres, que venham a complicar a vida dos que, bem ou mal, vão se defendendo, que não tragam, aparentemente, recursos, mas sim problemas”.
“Problemas” que, de uma forma ou de outra, são usados como sedimentos estruturantes de legitimidade da exclusão social como ato legislativo que no Brasil garantiu, cabe reiterar a título de exemplo, as armas de ataque para destruir, de modo rápido, sumário, proteção e direitos sociais, impondo-nos o extermínio social seletivo em que vivemos. Armas que tiveram seus gatilhos acionados desde que as hostes antidemocráticas tomaram “de posse” os Poderes da República, em 2016, a partir do governo Temer. Momento demarcado com a EC 95/2016, a dita “regra de ouro” (nela, para o povo, nem a certeza de água tratada, que também é um bem mineral, está garantida), o processo de afastamento do papel do Estado na garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição.
Como nos piores momentos da história das classes trabalhadoras, a contar da Revolução Industrial, coube ao sindicalismo reverter essa condição e neles o papel do sindicalista foi da maior relevância, portanto, a compulsão para contê-lo tenciona por maior aversão. A legislação tem sido adulterada em sua concepção protetiva e a cada dia se torna mais um óbice do que um instrumento à ação sindical no sentido da reversão desse cenário, pois essa atividade tem sido colocada e tratada como um ato ilegal, no qual a prevalência do individual sobre o coletivo e a desconstituição da autonomia das assembleias o exemplifica.
A aversão sistemática à ação sindical faz que haja um imperativo do reconhecimento de que ela existe. Uma afecção deletéria às forças sociais populares que, além de ser instilada continuadamente em leis e teorias positivistas de domínio do capital, também, a partir do caráter histórico ideológico dominante, é intuída na subjetividade humana e social, dando vigor ao antissindicalismo.
Decerto que, reconhecida essa aversão, é relevante, de igual forma, acompanhar Adela Cortina (2020, p. 22) e questionar: “como mencionar as realidades pessoais e sociais para poder reconhecê-las se elas não têm um corpo físico? É impossível indicar com o dedo a democracia, a liberdade, a consciência […] […] assim como apontar fisicamente para a xenofobia, o racismo, a misoginia…” e nessa lista acrescento o antissindicalismo e assédios. “Por isso, essas realidades sociais necessitam de nomes que nos permitam reconhecê-las para saber [da gravidade] de sua existência, para poder analisá-las e tomar uma posição sobre elas. Caso contrário, se permanecerem nas brumas do anonimato, podem agir com a força de uma ideologia”. O medo ou a aversão, reativo vinculado a processos históricos ideológicos dominantes, no caso sindical, não é combatido, tampouco reconhecido como um reagente mental potente internalizado no imaginário coletivo, como que “uma visão deformada e deformante da realidade, que a classe dominante ou os grupos dominantes de determinado tempo e contexto destilam para seguir mantendo sua dominação”. Afinal, para concluir:
A ideologia, quanto mais silenciosa, mais efetiva, porque nem sequer se pode denunciá-la. Distorce a realidade ocultando-a, envolvendo-a em um manto de invisibilidade, de modo que seja impossível distinguir as imagens das coisas. É por isso que a história consiste, ao menos em certa medida, em dar nomes às coisas, tanto as que se pode apontar com o dedo, como e sobretudo as que não se pode apontar porque formam parte da trama de nossa realidade social, não do mundo físico (Cortina, 2020, p. 22).
Por essa via fica mais evidente e pode-se questionar o que tem dado sustentação ao antissindicalismo. Alguns atribuem os instrumentos patronais presentes nos conflitos e nas contradições na relação capital trabalho, mas isso por si só denota que tais contingências já foram retidas e/ou assimiladas como ideologias justificadoras da prática antissindical desde as antigas ordens estabelecidas. A caracterização ideológica capitalista tem sido uma matriz detratora do sindicalismo laboral desde sua origem, todavia não só daí.
Não resta dúvida de que foi o “primeiro impulso” vital e gerador do ato sindical, a contar da Revolução Industrial, a ação “radical” ostensiva para a defesa e a denúncia das diversas formas violentas e extorsivas de exploração da pobreza, da miséria proletária. Muitas delas recorrentes, com ambientes e condições de trabalho precários, penosos, perigosos e insalubres, ungidas ritualisticamente com os escarros mórbidos da desigualdade e da injustiça social destilados por hordas capitalistas.
Quem eram as pessoas que se sujeitavam a estas condições e ambientes? Quem passou a liderá-las e representá-las? Obviamente, repeti-las é desnecessário, sabemos quem são e, também, da aversão que as perseguem.
Não sem razão, atermo-nos à caracterização dessa aversão, nominá-la, é, de igual forma, reconhecer parte importante dos transtornos até aqui debatidos. Ademais, a simples negativa de se falar disso já é um de seus sintomas. Pensar sobre isso foi um dos motivos de chegar até aqui. De tal modo que, independentemente de aprofundamento para uma justificativa lexiológica conclusiva para um neologismo, o mesmo não é aqui considerado e tampouco objeção para aprofundá-lo. No entanto, não há como desconhecer que a “aporofobia”, a aversão à pobreza, a quem se encontra à margem social, com ou sem qualquer vínculo empregatício, trabalhadora ou trabalhador, portanto, operário ou proletário, tem como principal e única trincheira de sobrevivência e luta, legal e constitucionalmente (ainda) reconhecida, a entidade sindical. E é nela, no sindicato, que tanto a pessoa física, sindicalista, quanto a pessoa jurídica, entidade sindical, onde exponencialmente a “aporofobia” atinge outra dimensão. Nem mesmo em contextos drásticos aos quais a exigência de radicalidade para a mudança da realidade impõe a presença da liderança sindical como alternativa para ultrapassá-la, há a verdadeira superação, ou minimamente, o rechaço pedagógico à aversão. Aliás, nessa hora, no máximo a compulsão aversiva é controlada ou tolerável.
Daqui, por dedução ao demonstrado, reconhecendo que o envolvimento pessoal compromete a isenção, então, abstraindo-me do rigor científico, considero que a “aporofobia” tem sua variante exponencial contida e espalhada no e sobre o sindicalismo laboral. Logo, revelar-se-á em uma dimensão fóbica de escala coletiva que afeta cruel e drasticamente — seja por filiação, representação ou liderança — quem atua ou possuí vínculo de proximidade no ou com o sindicato, razão pela qual, o medo, o temor, enfim a fobia, transfigurada em ódio do e ao ente sindical denomino como SINDICATOFOBIA.10 Em uma figuração léxica adaptada de Adela Cortina (2020, p. 28), “diz-se do ódio, repugnância ou hostilidade ante” o sindicato, o/a sindicalista, a liderança que representa as classes operárias (trabalhadora ou trabalhador), empregadas ou não, mas, prioritariamente, aquelas exploradas na sua degradante condição de pobreza, miséria, pois se encontram detidas no desemprego, na informalidade, na intermitência e/ou no desalento.
Dilema sindical: resistência ou racionalidade (neoliberal)
E por que trouxe essas discussões até aqui? Primeiramente, pela naturalidade de que sejam uma realidade e assim permaneçam e, de igual maneira, como são recebidas em nossas relações e não são tratadas devidamente. Mais notadamente pelo movimento sindical. Mulheres e homens que são líderes, dirigentes sindicais, têm incorporado esse estado de contradições e aversões sem a percepção da gravidade. Uma ausência de percepção que coaduna com a negação da própria condição de liderança.
Historicamente a questão social e suas contradições se consistiram como contundente imperativo da luta sindical. No entanto, o tônus vital e crucial de subversão à ordem, à normalidade legislada e aos instrumentos ideológicos prevalentes como domínio capitalista para a exploração abjeta de quem trabalha ou depende do trabalho para viver, sofreu afecção significativa na sua resistência ao neoliberalismo.
Na exposição inaugural deste painel, o professor Vincent Gaulejac nos fez refletir acerca da estruturação “paradoxante” das sociedades hipermodernas que sobrepesam as condições do neoliberalismo. Por suas palavras, “isso significa que elas nos confrontam com injunções paradoxais permanentes, com dilemas inconciliáveis e com tensões contraditórias exacerbadas”. (Massa, 2020, p. 62). Condições às quais o avanço neoliberal se incorpora no seio social e seu sentido e estado degenerativo humano passam a ser aceitos. Ao ponto de até mesmo o movimento sindical incorporá-las.
Situação vinculante a aspectos em que a negação da condição sindical processa vetores de deterioração da subjetividade das lideranças sindicais, que é apropriada utilitariamente pelas estruturas de domínio da sociedade capitalista. Aspectos antevistos como parte de uma “nova razão de mundo” passaram a ditar não só as leis, as regras, mas, sobretudo, o comportamento social, como dizem Dardot & Laval (2016). Assim, como num agouro à prática sindical, “a polarização entre os que desistem e os que são bem-sucedidos mina a solidariedade e a cidadania. Abstenção eleitoral, dessindicalização, racismo, tudo parece conduzir à destruição das condições do coletivo e, por consequência, ao enfraquecimento da capacidade de agir contra o neoliberalismo” (p. 9).
Não é demais lembrar que esta racionalidade neoliberal acaba sendo recepcionada pelo sindicalismo laboral como condicionante aversivo à sua prática em suas estratégias negociais e táticas políticas, algo ou atitude antes só observada como argumento e gesto na defesa de planos administrativos e pautas patronais. Trata-se de uma força racional cuja dimensão já é conhecida e naturalizada por sua violência expressa nos efeitos nefastos da degradação social; maiormente drástica em face do processo desenfreado de precarização de direitos, condições e ambientes de trabalho. Dardot & Laval (2016) ressaltam que:
[…] é fundamental compreender como se exerce hoje a violência comum, rotineira, que pesa sobre os indivíduos, à maneira de Marx talvez, quando observava que a dominação do capital sobre o trabalho recorria apenas excepcionalmente à violência extraeconômica — e exercia-se mais comumente na forma de uma “coerção muda” inserida nas palavras e nas coisas (p. 21).
O quanto dessa racionalidade, dessa “coerção muda”, já tem validade e poder para conter os movimentos da ação sindical é diretamente proporcional à sua capacidade de neutralizá-la. Não é o “colaborador”, mas sim o trabalhador, a trabalhadora, que detêm essa capacidade, cujo coletivo mune a solidariedade com a força de uma unidade classista laboral organizada, porque gênese e sentido do que é o sindicato. Não há conflito entre capital e seus colaboradores, há relação de harmonia, docilidade. No entanto, a “nova razão do mundo” incutiu no imaginário coletivo e até na mente de uma diversidade de sindicalistas o sumiço ou a metamorfose do trabalhador, que passa a conviver com essa incensada anomalia neoliberal.
Conviver com o “colaborador”, trazê-lo para dentro da própria estrutura sindical sem admoestá-lo acerca de sua pertença classista. Assim, se é um colaborador do capital, fica bem mais fácil admitir e impor os ritos da competitividade, da concorrência, das metas, por consequência ele também vai aceitar a intensidade e o ritmo de trabalho e todas as implicações, física e mental, decorrentes da maior exposição aos riscos e à exaustão das jornadas excessivas.
Em síntese, há bom tempo estamos lidando com um processo de conformação neoliberal que mina a sanidade das classes trabalhadoras, fragmenta sua unidade e captura sua solidariedade para uso e domínio exclusivo das corporações financeiras e empresariais. Importa alternar essa conformidade como um imperativo determinante para a retomada urgente da centralidade do trabalho como definidora do papel sindical ou senão concordar que “a exigência de ‘competitividade’ tornou-se um princípio político geral que comanda as reformas em todos os domínios” e o sindicalismo se move sob mesmo comando.
Afinal, ela [a exigência de competitividade] é a expressão mais clara de que estamos lidando não com uma “mercantilização sorrateira”, mas com uma expansão da racionalidade de mercado a toda a existência por meio da generalização da forma- -empresa. É essa “racionalização da existência” que, afinal, como dizia Margaret Thatcher, pode “mudar a alma e o coração” (Dardot & Laval, 2016, p. 27).
Do demonstrado, deduz-se que a base da “racionalização da existência” neoliberal há um bom tempo perpassa o imaginário e o ideário das classes trabalhadoras, consequentemente a mente e o corpo, o comportamento e a ação, logo, de igual maneira, define e atinge os modos de produção e de serviço, além de como se dá ou se dará a reação esses. Enfim, outras disfunções da racionalidade neoliberal já são caracterizadas entre os transtornos na vida sindical; sintomas de que a ideologia neoliberal se expressa na lida sindical acentuam as contradições e os males que deveria combater. Como que uma espécie de lastro hegemônico neoliberal, componentes do neoliberalismo passam a fazer parte da luta de classe. Meritocracia e competitividade, por exemplo, estão entre os seus maiores.
Transtorno mental sindical: invisibilidade de uma realidade
À contribuição aqui ressalvada, de “como o trabalho contemporâneo afeta as relações pessoais, sociais e coletivas” (Dardot & Laval, 2016, p. 27), detive-me na perspectiva do transtorno mental na ação coletiva a partir da liderança sindical. O quanto isso afeta a representação sindical, por conseguinte, “as relações coletivas”.
Bom, primeiro considerando o caráter inerente de representação do trabalhador e da trabalhadora que estão adoecidos mental ou fisicamente e os fatores desencadeadores desse mal em uma dimensão coletiva. Segundo, também, como líder, as condições subjetivas, intensificadas e/ou desencadeadas com a objetividade imposta decorrente da realidade social e das relações e/ou ambiente de trabalho, que levam à degeneração ou exaustão física e mental de quem trabalha ou necessita do trabalho para viver, além de demonstrá-la por representação (amostra potente, já que sujeito coletivo, de uma classe adoecida), desde 2017, ao que vimos, teve sua autonomia e legitimidade de ação duramente atingidas.
Uma plêiade ampliada de degradação que convulsiona a “aporofobia” e acentua a sindicatofobia, a aversão a líderes sindicais, as suas entidades e a qualquer organização que denuncie e rompa com as fronteiras de acesso aos domínios do capital.
A precarização, a degradação classista — direitos, condições e ambientes de trabalho — que antes era cruelmente sentida pela base, se no sindicalismo era em outra dimensão, porque tinha na sede sindical, na sua estrutura (física, ideológica e legal), um polo de proteção para seus líderes, com estabilidade e estabilizador para as suas ações, uma espécie de blindagem, uma câmera de refúgio na qual se observava, analisava, preparava e organizava as classes trabalhadoras para quase todos tipos de enfrentamento ao capital, a contar da “reforma trabalhista”, em 2017, não ficou incólume.
Se as consequências das “crises cíclicas”, ou do “estado de crise”, mantidas e impulsionadas pelo capital, impunham e impõem as ameaças, a destruição e o terror brutal do avanço neoliberal na vida das classes trabalhadoras, quem as representa também passou a sentir sobre si o peso dessa brutalidade.
Junto delas, foram aprisionados como se fossem reféns da desestabilização econômica e social e, ao mesmo tempo, as únicas detentoras da capacidade e responsabilidade para o resgate da estabilização. E o preço desse resgate foi e é alto. Entregar tudo. Aceitar o saqueio permanente de direitos e conquistas, coletivas e individuais. Como se em um ritual macabro reservado ao sacrifício e à aceitação da “parte que te cabe”. O sinal indicando as reservas, a fila do osso e das caçambas de lixo: demissão, rotatividade, intermitência, informalidade, pejotismo, desalento, venda e penhora de bens (imóveis, veículos, equipamentos, ferramentas…), inadimplência, calotes etc., ou seja, o caos falimentar e famélico.
Um ambiente com percalços de quase desolação insurge no convívio sindical. Se a desconexão do trabalho, a extensa jornada antissocial presente na vida sindical, que é uma realidade invisível socialmente, até para a maioria das classes trabalhadoras e categorias representadas, já impunha desgastes (transtornos) físicos e mentais às lideranças sindicais, levando-as à exaustão seguida do afastamento e, infelizmente, a severas críticas quando acometidas do agravamento de patologias decorrentes de suas ações, imaginemos com a configuração estrutural do contexto que se impõe de 2017 para cá?
Nem é preciso elaborações bem qualificadas para responder a isso, porque a obviedade do cenário que se impôs ao sindicalista é por si só reveladora.
A desconexão do trabalho que está diretamente interligada a lida sindical diária, 24 horas, sem feriado, férias, descanso semanal, hora extra ou noturna, não escolhe local ou ambiente. O espaço e o convívio social são invadidos por interpelações que se tornam rotineiras. O caráter cada vez mais antissocial do “estar e ser” sindicalista o afasta de familiares, amigos e promove uma espécie de fissura nas suas relações e círculos sociais. Aquela ideia do “não padrão” neoliberal (não pare agora) toma conta da ação sindical e um espectro de horas antissociais avança e se sobrepõe às demais horas, fazendo que a capacidade da liderança passe a ser negada, até mesmo por ela própria.
Quando há percepção desse estado, passa-se a sentir que até os entes familiares mais próximos já estão discriminando a presença do sindicalista. Se a sindicatofobia existia no círculo familiar, mas cônjuges e filhos eram imunes a ela, agora já não são mais.
A sistematização neoliberal de modo coordenado descontrola a organização social, rompe todas as divisas da sociedade. Desorganiza as classes trabalhadoras.
Não se pode perder de vista de que essa desorganização do trabalho é parte determinante da organização do capital, uma lógica linear. É certeira na desorganização e precarização da estrutura sindical. Aquilo que viveu a classe trabalhadora no período em que se adensa o processo neoliberal no mundo tem rebatimento direto no Brasil, como já mencionado — principalmente depois de 2017. Contudo, é evidente que os males de até então, no caso da estrutura sindical e para as suas lideranças eram pouco percebidos. Daí em diante, não apenas são percebidos, como têm rebatimento em sua estrutura e conseguem gradualmente se impor e afetar (física e mentalmente) o sindicalismo brasileiro. O que era claramente visível na vida de quem trabalha ou depende do trabalho para viver, do ponto de vista econômico, estrutural e operacional, evidenciou-se como realidade incorporada na estrutura sindical.
Se o trabalhador tinha de mudar ou abrir mão de um imóvel para quitar suas dívidas ou amenizar despesas, assim como vender um veículo ou qualquer patrimônio ou bem, em mesmo sentido, agora, como já vimos, o sindicalismo passou a fazer o mesmo.
A situação de escassez de recursos é tamanha (dramática), que a crise econômica sindical se irrompe com a crise imobiliária. Com isso há entidades sindicais cedendo suas sedes, ou patrimônio, em regime (contrato) de comodato por não ter como arcar com despesas de manutenção ou conservação. De igual forma, também tem devolvido imóveis (espaços ou patrimônios) cedidos por entes públicos ou privados.
Se havia demissão, inclusive a pior delas, em massa, em todos os setores — indústria, comércio, rural, serviços etc. (público ou privado) e raramente ocorria nas entidades sindicais, tornou-se medida crônica extrema praticada no movimento sindical. O que era argumento histórico vigoroso na prática e retórica antidemissional sindical, transformou-se no seu contraditório.
As contradições para a ação sindical atingem um nível de perversidade tão conflituoso a sua concepção existencial, que a gravidade daquilo que combatia como degradação e precariedade de direitos, ambientes e condições de trabalho nas reformas trabalhista e previdenciária, se abate sobre o sindicalismo que passa a aplicá-las como alternativa de sobrevivência. Se era contrário e combatia demissões e planos demissionais, rotatividade, terceirização, contrato de trabalho temporário e/ou intermitente, pejotização, parcelamento de verbas rescisórias, suspensão parcial ou total de contrato de trabalho e salário etc., tudo isso se torna uma realidade devastadora para a vida sindical.
A instabilidade e a insegurança do mercado de trabalho, antevistas entre as prioridades centrais ao combate sindical para salvaguardar traços de equilíbrio e paz social às classes trabalhadoras, passam a tomar mais tempo e espaço da atuação das lideranças sindicais, pois o ritmo e a intensidade de suas ações multiplicaram e, antagonicamente, a defesa de suas próprias lides definharam.
O sindicalismo laboral tem diminuído sua participação ou até deixado de participar de atividades cruciais à sua ação em defesa das classes trabalhadoras — audiências públicas, visita à base, assembleias, comissões e espaços tripartires, por exemplo — por falta de quadros e/ou escassez recursos para atuação. Qual é o ponto crítico disso? Tudo isso está ocorrendo no momento de maior necessidade de atuação sindical no país.
Um número expressivo de sindicalistas tem sido devolvido para as suas bases e se soma à drástica redução do quadro laboral das entidades sindicais. Eram lideranças atuantes (porque estáveis) no sindicalismo, mantidas as expensas das entidades que dirigiam (lideravam e representavam). Eram liberadas das empresas, via acordos ou convenções coletivas, para dedicação exclusiva à ação sindical. As entidades sindicais sem condições para mantê-las com garantias legais — nas mesmas condições de vínculo empregatício — elas são devolvidas às suas empresas de origem e reintegradas em suas bases. Ocasião em que a penumbra antissindical e da sindicatofobia se adensa e os encobrem com perseguições, assédios, discriminação, que, geralmente, na maioria dos casos, só se encerram quando termina o período de estabilidade legal e, como em uma sina cruel costumeira do capital, irão parar no olho da rua.
Por fim, para uma consideração final, porém inconclusa, cabe uma derradeira questão: qual o rebatimento de toda esta realidade da vida sindical na saúde de quem ativamente lidera o sindicalismo? Apenas somatizá-la? A liderança sindical, para mobilizar e intensificar sua luta pela base, omite sua própria condição de sofrimento e males para quem trabalha ou depende do trabalho para viver. A ação de natureza coletiva tem como seu maior meio o diálogo. Assembleia, negociações, reuniões no local de trabalho. Conversar, ouvir, debater, deliberar sobre a condição real do mal e do sofrimento das classes trabalhadoras, sem, entretanto, exprimi-las como próprias de seu estado.
Notas
1 Afinal, como enunciado no art. 7.º, XXII, da Constituição Federal de 1988: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”.
2 Painel: “Capitalismo e destruição do trabalho – como o trabalho contemporâneo afeta as relações pessoais, sociais e coletivas”, no Seminário “Sofrimento Mental e Morte entre Trabalhadores e Trabalhadoras – Transtornos Mentais e Suicídios Relacionados ao Trabalho”, sob organização e coordenação do Ministério Público do Trabalho – Procuradoria Regional do Trabalho da 15.ª Região (MPT/PRT-15) e do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, realizado na sede do MPT/PRT-15, em Campinas- -SP, no dia 24 de maio de 2022.
3 Não se pode esquecer que a ordem estabelecida, de então, chegou ao extremo de decretar (Brasil, 2020) como essenciais e vitais, durante o estado de calamidade (pandemia de Covid-19), as atividades religiosas, para que alguns setores religiosos pudessem entreter e justificar a morte e a espera de um devir sagrado, glorioso, aos que aqui se purificassem na extrema exaustão laboral (mórbida ou letal) e sacrificassem seus corpos e espíritos aos deuses do mercado
4 Reich (2001, p. 194), em sua Psicologia de massas do fascismo, trata do comportamento dos líderes das nações envolvidas com a Primeira e Segunda guerras mundiais na constituição de elementos que foram decisivos para a sujeição dos povos a elas. A isso destaca que: “Na Primeira Guerra Mundial, em 1914, os ‘italianos’ eram inimigos mortais dos ‘alemães’, por assim dizer, ‘inimigos hereditários’ desde os mais remotos tempos. Na Segunda Guerra Mundial, em 1940, os ‘italianos’ e os ‘alemães’ eram irmãos de sangue, ‘novamente com base na hereditariedade’ para, em 1943, voltarem a ser inimigos mortais. Na próxima guerra mundial, suponhamos que em 1963, os ‘alemães’ e os ‘franceses’ terão passado de ‘ancestrais inimigos raciais’ a ‘ancestrais amigos raciais’”. Trata-se de um comportamento ambivalente que se repete no curso da história e, nesse atual momento da política no Brasil, está presente de modo induzido no seio da sociedade. Quadros históricos que romperam com a ditadura, com o seu ódio, trouxeram a possibilidade real de se revelar as mazelas das estruturas de poder, sejam das elites dominantes ou do Estado, tornam-se amigos históricos do povo — outrora, sem nenhum motivo para o povo (não para as elites dominantes), eram inimigos (hereditários) a serem combatidos. Ao ascenderem aos cargos mais elevados do país, como símbolos da esperança e do fim de uma espécie de medo hereditário, em um curto espaço de tempo, se tornam, novamente, inimigos hereditários. “Símbolo de líderes odiosos” que nunca tiveram responsabilidade ou preparo para a administração pública, o cultivo da política, da verdade, da convivência democrática (capitalista). Por razões inconclusas, não condizentes com a racionalidade, com as verdadeiras formas de consciência coletiva, hoje são tidos como os inimigos históricos (hereditários) do povo, da democracia. Dentre esses, por óbvio, incluem-se as lideranças de instituições (representativas e democráticas, como é caso do sindicalismo) mantenedoras históricas do combate a qualquer tipo de ordem estabelecida, na qual a desigualdade e a injustiça social são seus fundamentos mais explícitos.
5 Disponível em: http://www3.mte.gov.br/sistemas/mediador/ConsultarInstColetivo. Acesso em: 10 jan. 2023.
6 Com robusto orçamento provido compulsoriamente por recursos públicos. Destacando o custo especí- fico parlamentar, sem a estrutura que o circunda, seja em Brasília ou no seu estado de origem, o “custo de cada deputado ou senador atinge R$ 24,7 milhões por ano, segundo estudo que comparou gastos com parlamentares com renda média da população; além do salário, eles contam com até R$ 106 mil por mês para contratar até 25 secretários” (Veiga, 2022).
7 Destas: “6 emendas constitucionais de revisão, 111 emendas constitucionais, 2 leis delegadas, 125 leis complementares, 6.462 leis ordinárias, 1.678 medidas provisórias originárias, 5.491 reedições de medidas provisórias, 13.642 decretos federais e 148.725 normas complementares (portarias, instruções normativas, ordens de serviço, atos declaratórios, pareceres normativos etc.)” (IBPT, 2021).
8 Para se ter ideia da importância dessa conquista, estima-se que mais de 84 milhões de pessoas recebem anualmente o equivalente a 3% do Produto Interno Bruto (PIB) como 13.º salário.
9 O neologismo “Aporofobia”, desenvolvido pela filósofa espanhola Adela Cortina, para expressar aquilo que é denominado por ela como “o desprezo pelo pobre, o rechaço por quem não pode entregar nada em troca…” (Cortina, 2020, p. 19), caracterizando-se como uma “sistêmica rejeição à pobreza e às pessoas sem recursos”.
10 SINDICATOFOBIA: neologismo no qual a fusão das palavras “sindicato” e “fobia”, de origem grega, são consideradas em composição: “SYNDIKOS” + “PHÓBOS”. Sendo, “SYNDIKOS”, ‘advogado público’, do prefixo SYN (‘junto’), mais o radical DIKÉ (‘uso’, ‘justiça’, ‘costume’, ‘julgamento’), em uma tradução livre, “justiça juntos” + “PHÓBOS”, que significa “medo” ou “terror”.
Referências
BRASIL. Decreto n. 10.292, de 25 de março de 2020. Diário Oficial da União, 26 mar. 2020.
CORTINA, Adela. A aversão ao pobre: um desafio para a democracia. Trad. Daniel Fabre. São Paulo: Contracorrente, 2020.
DARDOT, P.; LAVAL C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.
DIEESE. Nota Técnica Nº 177. A importância da organização sindical dos trabalhadores. São Paulo: DIEESE, 2017.
_______. Nota Técnica Nº 200. Subsídios para o debate sobre a questão do Financiamento Sindical. São Paulo: DIEESE, 2018.
FREIRE, Diego. Em ‘agonia’, sindicatos demitem e vendem imóveis para sobreviver. Veja,&nbs